Mais uma analogia: como escritor eu vivo em dois diferentes "fusos horários". Primeiro existe o fuso horário do mundo real, que abrange meu ritual diário de acordar, vestir-me, tomar o café e então me dirigir até meu escritório para completar capítulos, páginas e palavras. Nesse ínterim, o próprio livro está criando um outro mundo, artificial, com seu próprio fuso horário particular.
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Se eu estivesse escrevendo um romance, eu poderia escrever estas duas sentenças: "O telefone tocou. Imediatamente ela se levantou do sofá e correu para atender." Dentro do livro, a seqüência cronológica é algo assim: o telefone toca, reação imediata. Mas fora do livro, no mundo do autor, minutos, horas, até mesmo dias podem separar essas duas sentenças. Talvez eu termine um dia de trabalho com a sentença "O telefone tocou", e então saia de férias por duas semanas. Não importa quando eu volto a trabalhar no livro; estou preso pelas leis de seu fuso horário. Eu jamais poderia escrever: "O telefone tocou. Duas semanas depois ela se levantou e foi atender." Misturar os dois fusos horários criaria um absurdo.
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Depois que eu termino o livro, de uma forma que me é peculiar por ser o seu autor, por onde quer que eu vá carrego o livro inteiro dentro de minha mente. "De cima", posso ver todo o enredo de uma só vez: início, meio e fim. Ninguém mais consegue fazê-lo — a não ser que também experimente-o dentro do tempo, labutando em todo ele, uma sentença após outra.
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Continuo me armando com analogias, pois as analogias são o único meio que temos para imaginar a história humana tal qual Deus a vê. Nós vemos a história como uma seqüência de quadros parados, um após o outro, como num carretel de filme de cinema; mas Deus vê o filme todo de uma só vez, num piscar de olhos. Ele a vê simultaneamente do ponto de vista de uma estrela longínqua e do ponto de vista da minha sala de estar, onde estou sentado, orando. Ele a vê na sua totalidade, como um livro inteiro, em vez de sentença por sentença e página por página.
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Podemos imaginar tal perspectiva obscuramente, como se num nevoeiro. Mas simplesmente reconhecer nossa incurável condição de estarmos presos ao tempo pode nos ajudar a compreender por que Deus não respondeu ao "por quê?" de Jó. Talvez Deus nos mantenha na ignorância porque possivelmente nem Jó, nem Einstein, nem você nem eu conseguiremos compreender o ponto de vista "de cima". Ao invés disso, Deus respondeu desenrolando uns poucos fatos fundamentais do universo que Jó mal conseguiu compreender, e advertiu: "Deixe o resto comigo".
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Não conseguimos compreender quais "regras" se aplicam a um Deus que vive fora do tempo, tal qual o percebemos, e assim mesmo algumas vezes penetra no tempo. Considere toda a confusão que cerca a palavra "presciência". Deus sabia com antecedência que Jó permaneceria fiel a ele e assim ganharia a Aposta? Se sabia, como é que foi uma aposta de verdade? Ou que dizer das calamidades naturais da Terra? Se Deus sabe com antecedência sobre elas, não é ele que deve levar a culpa? No nosso mundo, se uma pessoa sabe com antecedência que uma bomba irá explodir num automóvel estacionado e deixa de alertar as autoridades, tal pessoa é legalmente responsável. Portanto, será que Deus é "responsável" por tudo o que acontece, até mesmo tragédias, pois ele sabe a respeito com antecedência?
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Mas — e esta pode ser a principal mensagem subjacente à vigorosa fala de Deus a Jó — não podemos aplicar nossas regras simplistas a Deus. A própria palavra presciência — pré-ciência — denuncia o problema, pois expressa o ponto de vista de alguém preso dentro do tempo. Deus não enxerga o tempo numa seqüência A-B. Na realidade, estritamente falando, ele não nos "prevê" realizando coisas. Ele simplesmente nos vê fazendo-as, num eterno presente. E, quando tentamos imaginar o papel de Deus num determinado acontecimento, obrigatoriamente vemos as coisas "de baixo", e julgamos seu comportamento pelos frágeis padrões de uma moralidade contingente ao tempo. Um dia poderemos ver problemas tais como "Deus provocou a queda daquele avião?" sob uma ótica bem diferente.
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As prolongadas discussões da igreja quanto à presciência e à predestinação ilustram nossas tentativas desajeitadas de compreender o que, para nós, só faz sentido à medida que entra no tempo. Numa outra dimensão indubitavelmente encararemos essas questões de modo bem diferente. Em algumas de suas mais misteriosas passagens a Bíblia dá pistas quanto ao ponto de vista "de cima". Diz que Cristo foi "conhecido... antes da fundação do mundo", o que significa antes de Adão e antes da Queda e, portanto, antes que houvesse qualquer necessidade de redenção. Diz que a graça, a vida eterna, "nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos". Como se poderia dizer que alguma coisa aconteceu "antes dos tempos eternos"? Tal linguajar sugere o ponto de vista de um Deus que vive fora do tempo. Antes de criar o tempo, fez provisões para redimir um planeta caído que ainda nem existia! Mas, quando "entrou" no tempo (tal como eu, um escritor, posso me fazer personagem de meu próprio livro), Deus teve de viver e morrer, de acordo com as regras de nosso próprio mundo, preso dentro do tempo.
.Extraído do livro "Decepcionado com Deus"
Philip Yancey
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