sábado, 22 de novembro de 2008

Sofrimento e liberdade


Na teologia, a grande discussão, o principal nó a ser desatado, tem a ver com a relação entre Deus, felicidade, e liberdade.
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E os questionamentos da teodicéia (definida como conjunto de doutrinas que procuram justificar a bondade divina, contra os argumentos da existência do mal no mundo) principiam qualquer debate. Por que sofremos? Por que Deus, sendo simultaneamente bom e onipotente, permite tanta maldade? Não poderia o Todo-Poderoso ter criado um mundo isento de dor?
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Para piorar a angústia humana, o sofrimento não só existe, como é percebido. Quando animais irracionais sofrem, a dor não é antecipada, não é analisada e não lhes causa ansiedade. Homens e mulheres, porém, padecem para além da dor física.
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Ademais, a dor humana é fonte inesgotável de questionamento, tanto pela sua concretude (dói mesmo) como pela sua subjetividade (existem dores que não sabemos explicar, como a saudade).
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Todos sofrem e se angustiam ao mesmo tempo – corpo e mente padecem. Portanto, não bastam as aspirinas, as morfinas, os ansiolíticos.
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Também não adianta questionar se é possível um mundo sem dor. O sofrimento é universal, esmurra nossa cara todos os dias. Mesmo quando o dente não dói e o rim não provoca urros, existe a percepção de que agora mesmo, em algum lugar, alguém está chorando.
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Os gregos enxergavam o sofrimento como uma tragédia, na qual os seres humanos eram reduzidos a um fantoche. A história seguia por trilhos que eles chamavam de destino e ninguém conseguia se libertar dessa cadeia inexorável. O fatalismo grego provocava passividade (estoicismo), negação (cinismo), permissividade (hedonismo) ou um salto transcendental (platonismo). O mal, contudo, permanecia absoluto, já que nada, e ninguém, poderiam anulá-lo. Nesse sentido, as forças que governavam o mundo permaneciam essencialmente cegas.
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Então, o nó górdio da filosofia, e posteriormente, da teologia, se expressava nos paradoxos: “Se existe um Deus onipotente, ele não pode eliminar o mal e o sofrimento? Se existe um Deus bom por que ele não deseja acabar com a dor? Se pode e não faz, não é bondoso. Se quer e não faz, não é onipontente. Se ele não for onipotente, não é Deus. Se não for bondoso, não merece ser servido”.
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Reconheço minha limitação. Não tenho a pretensão de dar uma resposta definitiva que desalinhe o novelo que intrigou Heráclito, Sócrates, Agostinho, Tomás de Aquino, João Calvino, Soren Kierkegaard e tantos outros. Meu conhecimento é bem intuitivo e minha contribuição, mínima. Mas como bom cearense, vou ser atrevido.
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Para começar a arranhar a superfície do assunto, falemos de liberdade. Tanto divina como humana. Até que ponto existe liberdade no universo? No raciocínio grego, Deus era preso a si mesmo. Compreendido a partir de conceitos absolutos (convém lembrar que no universo semítico não se falava em absolutos), o deus grego era impassivo, já que nada poderia ser tão forte que o afetasse; era inerte, porque o perfeito jamais poderia mudar.
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Os gregos restringiam, portanto, a liberdade a uma mera inserção harmônica do indivíduo na polis e da polis no cosmos divino. As bitolas do destino, ou do cosmos, é que conduziam cada indivíduo, cada sociedade e toda a história.
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O ser humano não tinha como reverter, adiar ou antecipar o que estivesse determinado pelas engrenagens do fatalismo. Sua liberdade era bem pequena. Ele podia até fazer micro-ações que lhe dariam um pouco de satisfação, mas jamais concretizar macro-ações, aquelas capazes de alterar o que “já estava escrito e determinado”.
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A revelação judaico-cristã nunca concordou com essa compreensão grega do “motor imóvel” (Deus como um motor que põe tudo em movimento, mas ele mesmo, por nada é movido). Nem aceitava que o futuro não pudesse ser alterado por estar determinado à priori.
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Se os gregos não acreditavam na possibilidade de alterar o curso da história, os profetas judeus, e mais tarde os evangelistas cristãos, convocavam o povo a mudar o futuro.
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Aceito o argumento de Jose Comblin de que a compreensão da liberdade não evolui porque se manteve restrista ao conceito grego. A propalada democracia ateniense “somente valia para uma minoria de privilegiados”; a rigor, só havia aristocracia na Grécia. Poucos, muito poucos, conheciam a liberdade.
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Portanto, proponho que o debate sobre o sofrimento humano considere a liberdade dentro do campo de compreensão judaica. Deus é livre e os seres humanos, criados à sua imagem, também possuem liberdade de arbítrio.
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Deus é onipotente; Deus usou de sua soberania para criar pessoas dotadas de arbítrio. Para mim, essas duas afirmações não comportam discussão.
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Mas como podem co-existir duas liberdades, sendo uma delas infinitamente mais poderosa do que a outra? Como os seres humanos poderiam ser livres de verdade se Deus não lhes desse espaço? Feuerbach afirmava que a onipotência divina esmaga a dignidade humana e que se Deus for tudo, não somos nada. Muitos, depois dele, trabalharam dentro da mesma lógica: para Marx, Deus promove alienação; para Nietzsche, empobrecimento; para Freud, infantilização.
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O esvaziamento de Deus em Cristo, acaba com o paradoxo da onipotência versus liberdade humana. Cito Andrés Torres Queiruga:
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“Talvez não exista mal-entendido mais terrível e mais urgente a ser erradicado do que aquele que Feuerbach pôs – ou melhor, detectou – na raiz do ateísmo moderno: o Deus que em Cristo, “sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com sua pobreza (2Co 8,9), é rechaçado como o vampiro que vive à custa do empobrecimento do homem: “Para enriquecer a Deus, deve-se empobrecer o homem; para Deus seja tudo, o homem deve ser nada".
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Portanto, a liberdade humana só é possível porque Deus concede espaço. Eis a maior de todas as manifestações da Graça. Deus se esvaziou, entrou na hístória "manso e humilde de coração", voluntariou-se a viver todas as contingências às quais estamos submetidos, sofreu e morreu como qualquer um.
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“O ser humano participa da divindade no sentido de que é feito livre como Deus é livre. Para que a pessoa seja livre, Deus renuncia seu poder. Entrega o poder ao ser humano – juntamente com toda a criação – para que ele construa a sua vida com toda liberdade. Deus se retira para não se impor. A sua presença no mundo manifesta-se na vida e na morte de Jesus. Deus fez-se um crucificado para que o ser humano fosse inteiramente livre. Esta liberdade pode ser para o bem e para o mal. Não há liberdade se não houver possibilidade de escolha” (Comblin).
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Segundo Jürgen Moltmann, a fé cristã “liberta para a liberdade”. A reação moderna e atéia, segundo Moltmann, foi na direção oposta:
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“No mundo moderno, pelo contrário, os homens entendem liberdade como o fato do sujeito dispor livremente de sua própria vida e de sua propriedade e liberdade coletiva como o fato de corporações políticas, povos ou estados disporem soberanamente sobre seus próprios interesses. Aqui a liberdade é entendida como o ‘direito de autodeterminação’ do indivíduos ou dos povos. Liberdade aqui é domínio sobre si mesmo”.
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Mas a fé cristã segue outra lógica. Deus soberanamente decide valorizar as pessoas como cooperadoras com ele na construção da história.
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“Mas para a fé cristã a verdadeira liberdade não consiste nem na compreensão de uma necessidade cósmica ou histórica, nem no dispor com autonomia sobre si próprio e sobre sua propriedade, mas sim no ser tocado pela energia da vida divina e no ter parte nela. Na confiança no Deus do Êxodo e da Ressurreição o crente experimenta esta força de Deus que liberta e desperta, e dela se torna participante" (Moltmann).
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O mal, portanto, inerente à liberdade que Deus soberanamente decidiu conceder aos humanos, existe simultâneo ao bem. No espaço dessa contingência, o bem e o mal não são apenas possíveis como podem ser potencializados e anulados pelo arbítrio dos filhos de Deus.
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A trama das Escrituras consiste em mostrar que essa liberdade foi usada perniciosamente, mas que Deus nunca desistiu da sua criação. Ele revela seu pesar pelo mal; fielmente fornece princípios e verdades que podem tornar a vida bonita; chama seus filhos para que se arrependam das suas más escolhas e os convoca a serem artesãos de uma nova história.
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Soli Deo Gloria.
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Bibliografia:
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Queiruga, Andrés Torres - "Do Terror de Isaac ao Abbá de Jesus" - Paulinas.
Moltmann, Jürgen - "O Espírito da Vida" - Editora Vozes.
Comblin, Jose - "A Vida - Em Busca da Liberdade" Editora Paulus.
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Por Ricardo Gondim
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6 comentários:

Anônimo disse...

Junior,

Tenho reservas a Ricardo Gondim por causa de seu neoteísmo. Por isso, fiz uma leitura preliminar e me esforçarei para analisar o texto dele sem preconceitos.

Por ora, ficarei apenas remoendo o texto.

Em Cristo,

Clóvis

Ronaldo Junior disse...

Clóvis!

Entendo sua preocupação quanto a teologia de Ricardo Gondim. Mas faça um esforço p/ ler o texto sem preconceitos.
Longe de mim tentar lhe convencer de abandonar seu calvinismo, mesmo por que, gosto muito da teologia reformada, tirando apenas os extremismos fatalistas dos hipercalvinistas.

Boa leitura e aguardo suas pontuações sobre o texto.

Com carinho,
Junior

JamesCondera disse...

Graça e paz vos sejam multiplicadas, pelo conhecimento de Deus e de Jesus, nosso Senhor, irmão Junior.

Em verdade, com a liberdade que Cristo nos agracia, "todas as coisas são puras para os puros..." (Tito 1.15).

Portanto, entendemos que:

1. Liberdade, àqueles que seguem a Cristo Jesus e seu Evangelho, aos crentes...

2. Sofrimento, àqueles que seguem a doutrina, ou teologia, ou pensamento de outrem (como de Agostinho, Tomás de Aquino, João Calvino, Soren Kierkegaard e tantos outros)...

Fraternalmente.
James.
www.jesusmaioramor.blogspot.com

Rinaldo Santana disse...

Caro Junior
Graça e paz,sou admirador do Rcardo Gondim, independentemente de qualquer ideia neoteista dele,como alguem comenta!!!.

Em Cristo
José Rinaldo de Santana
www.rinaldoeapalavra.blogspot.com

Ronaldo Junior disse...

Caro James!

Seu comentário é pertinente.
Se conhecemos a Verdade, verdadeiramente somos livres.

Paz,
Junior

Ronaldo Junior disse...

Prezado Rinaldo!

Também sou um admirador do Gondim. Pena que muitos não entendem seus posicionamentos.
Seu "neoteísmo" na verdade não tem nada de novo. Apenas tem tido a coragem de verberar algumas verdades que o "gueto" evangélico ignora.

Oremos por ele, pois tem sido uma voz profética para o Brasil.

No amor de Cristo,
Junior

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