A Imprensa volta a noticiar uma problemática que foi tema de muitos debates há alguns anos atrás.
Na ocasião, Valdemar Figueredo Filho, nos trouxe uma brilhante reflexão sobre a "muralização" das favelas.
Segue na íntegra a exímia abordagem do pastor e flamenguista doente.
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"Concordo com o Conde quando diz que as favelas devem ser muradas. A proposta é polêmica, mas a reação da mídia e de setores da sociedade foi o que de fato me surpreendeu. Estaria o nobre Conde propondo uma grande novidade ou seria o nobre Conde um arquiteto que dá formas concretas ao que já está entre nós? Ele, o Conde, tratou de apresentar evasivas e retirar sua proposta herética. Eu, que nobre não sou, mantenho, minha adesão a ela. Tudo bem que topograficamente as favelas sejam altas, mas não precisam ser largas. Em outros termos, que as favelas sejam olhadas de bem longe, mas que não se esparramem pelo espaço urbano a ponto de misturar-se com os meus vizinhos. Muro nas favelas! Por favor, não pense que sou porta-voz desse discurso. O muro que julgo ser necessário erguer é de uma outra natureza, nada tem a ver com essas motivações mesquinhas. Ele cumpre um outro papel social. Mas antes de tratar do muro que julgo conveniente, pensemos brevemente em alguns contextos em que cidades foram muradas.
Vamos dar um pulinho na Idade Média e visitar as cidades episcopais. Tais cidades eram muradas. Antes de adentrarmos a cidade, andamos pelos arredores e proseamos com os camponeses que mantinham a cidade com a agricultura e com os impostos que pagavam pelo uso da terra. O bispo e sua corte – clero – estavam intramuros, ocupados com seus assuntos elevados. Nesta sociedade, o muro cumpria um papel social relevante: demarcava a diferença entre o clero e os camponeses; entre a cidade e a periferia; entre receptores e doadores; enfim, entre o sagrado e o profano (Pirenne, 1976:46).
Aproveitemos nossa viagem no tempo para passar nos burgos. Estamos em plena dissolução do Império Carolíngio. Tempo de muitas incertezas, mas ao menos uma certeza: construir muros era o que havia de mais urgente. Sabe lá quando vêm os sarracenos ou os normandos? Construamos muros e fechemos os portões! Em poucas palavras, os burgos eram cidades muradas que dentro do possível asseguravam proteção aos príncipes feudais e à população adjacente (Ibid.:47).
Estamos ainda gozando dos ares europeus na Idade Média – para uns, frios demais, e para outros, frescos, frescos demais. Percebemos um intenso movimento de camponeses que deixam o campo e migram para as cidades. Não era o caso de um movimento espontâneo ou um mero acaso. A burguesia era a orientadora desta mudança significativa. Afirmava com isso seus interesses diante da recalcitrante igreja e dos perplexos senhores latifundiários. Percebemos que também nestas cidades burguesas os muros foram construídos com propósitos precisos. É de fundamental importância atinar para o fato de que os muros burgueses nada tinham que ver com os muros das cidades episcopais e nem com os muros das cidades dos príncipes feudais. Os mercadores tratavam de construir muralhas para não correrem o risco de saques. As muralhas urbanas da burguesia eram justificadas na medida em que as mercadorias tinham que ser protegidas. A construção de muralhas e a manutenção de cidades fortificadas exigiam um permanente esforço das camadas populares para pagar os tributos. Ou você pensou que ia se proteger dentro da cidade de graça? (Ibid.:59). O paradoxo é o seguinte: na cidade burguesa, muros são construídos com pedras, areias, sangue e carne. O entulho massa humana servia para proteger as mercadorias de eventuais pilhagens.
Jamais estive numa cidade episcopal, quem me dera conhecer o Vaticano! Muito menos conheço burgos regidos por príncipes feudais. Mas, convenhamos, a cidade murada burguesa nos é familiar. O projeto burguês é um projeto vencedor que superou séculos, atravessou mares e hoje perdura entre nós.
Saindo da Idade Média na Europa e chegando à nossa favela carioca, construir muros em torno das favelas é tão-somente dar visibilidade ao que de fato já existe. De alguma forma, quem vive nesta cidade maravilhosa sabe os que são de dentro e os que são de fora. A favela está fora! Perceba que muros não são para proteger as favelas, antes, protege a cidade das favelas. O nobre Conde em questão pensa com cabeça de urbanista e se mostra ingênuo quanto às implicações de suas teses (é claro que não faço justiça ao Conde e o que digo dele não passa de uma caricatura). Dar visibilidade ao muro é dar visibilidade a outras coisas sérias, como, por exemplo: há entre nós segregação no sentido pleno da palavra. Vigora separação de caráter racial. Observamos um sistema judiciário orientado para os que estão intramuros. A força policial não reconhece a favela como espaço da cidade. É fácil distinguir a cultura da favela como cultura de gueto. Enfim, há entre nós muros construídos para proteger as mercadorias de eventuais saques. Há entre nós muros! Quanto a nós, igreja evangélica histórica brasileira, há muito que fizemos a nossa opção preferencial pelos ricos e classe média da cidade. Isto é, escolhemos viver intramuros. E mesmo as igrejas que espacialmente estão à margem, preferem se identificar com as igrejas que estão no centro. Pelo que sei, são poucas as igrejas que assumiram sua natureza e encarnaram o jeito de ser dos que vivem fora do muro. Na concepção de Niebuhr (1992), as igrejas evangélicas deserdaram os pobres no afã de identificar-se com as classes privilegiadas. Como resultado surgem as seitas evangélicas, expressões destoantes em termos eclesiásticos e sociais. Neste pensamento, a institucionalização denominacional das igrejas históricas é um movimento em direção às classes privilegiadas em detrimento da linguagem e roupagem que caracterizam os pobres da cidade. Portanto, a linguagem do pobre é herética por natureza, ela sempre desestabiliza a ordem, seja a ordem litúrgica ou a ordem social. A linguagem das camadas populares é destoante e sempre está fora de ordem.
Preciso avisar que este meu desafogo não é orientado nem pelo marxismo nem pela Teologia da Libertação. Acho que está na hora de sacarmos alguns temas que estão nos balaios ideológicos e considerá-los à luz da ética cristã. É daqui que eu reflito, é aqui que me debato e é aqui o meu confronto – ética cristã! É a partir da ética cristã que proponho a visibilidade das favelas muradas. Recuso a tendência de romantizar a favela, nem quero que suas ruelas sejam transformadas em pistas de jipe para passeios de turistas curiosos, num tipo de safári urbano onde o que importa é a adrenalina do perigo do lugar, bem como os seus tipos exóticos. Seria uma grande ilusão pensar que foram as camadas populares que construíram a favela. E já que não foram os nativos que construíram os muros das favelas, acho que cabe a eles derrubá-los.
Espero que a esta altura você já tenha entendido que quando digo concordar com construções de muros estou fazendo uso de uma metáfora. E já que estou nestas águas, deixe-me abusar. Minha proposta é que nossas igrejas se transformem num tipo de casa de Raabe. Explico: por mais paradoxal que seja, a casa de Raabe era estratégica para pôr fim aos muros de Jericó justamente porque estava localizada no muro. A igreja evangélica se faz presente no morro carioca bem como nos vales aplainados onde residem as camadas sociais privilegiadas. Somos uma chance que a cidade tem de diálogo. Vou mais longe: somos a melhor chance para pôr muros abaixo e promover encontros. Na relação cidade e favela carioca, não reconheço outra instituição que possua melhores condições que a igreja evangélica para promover encontros e justiça. Não podemos naturalizar a favela de tal forma a transformá-la num bairro, mas mantê-la na condição de favela. Da mesma maneira, não podemos supor favela como um campo de missões urbanas onde propomos melhorias pontuais sem jamais indagar sobre as suas causas e as forças que a mantêm. Em outros termos, podemos e devemos ir mais fundo no enfrentamento do que se convencionou chamar de justiça social. Espero sinceramente que não estejamos conformados com este século, cabeça formatada pela cultura, com tudo que isso implica, de maneira a nos sentirmos constrangidos com os valores do Reino. Mas, se nos submetermos ao longo e penoso processo de renovação da mente, podemos desconfiar da durabilidade dos muros construídos com pedras brutas. Concordo com todos que se encantam com a vida que viceja das favelas. Reconheço que há uma grande solidariedade e o termo comunidade define bem o tipo de interatividade que se vive nestes espaços. Sei, não por ouvir falar, mas por conviver, que as pessoas que habitam a favela são pessoas de bem, trabalhadoras, capazes, criativas e bambas. Tudo isso não me imobiliza, ao contrário, me anima, para argumentar contra o status quo. Não é a comunidade que deve ruir, mas sim as estruturas opressoras que geram pobreza e morte. Estruturas essas que são essencialmente excludentes.
Volto para a Idade Média e deparo-me com um tal de Francisco. Nobre. Ele sabia que o seu pai era um dos principais construtores e mantenedores das muralhas da cidade de Assis. Francisco de Assis fez o caminho inverso, deixou a vida burguesa e foi ao encontro dos pobres que estavam fora da cidade murada. Chegou à igrejinha de Porciúncula – a menor igreja de Assis. Sabemos que o movimento espiritual que dirigiu teve implicações sociais profundas. Em poucas palavras, Francisco de Assis deu visibilidade ao muro tão somente para propor a sua destruição. Quando expôs o muro, mostrou exatamente onde a igreja estava. Como se sentia parte da igreja, e a ela queria ser submisso, pelo exemplo a convidou a se desencastelar. Francisco confrontou com muito amor seus dois grupos de origem: a igreja institucional e a burguesia. Teremos nós a mesma coragem?"
Valdemar Figueredo Filho pastor, sociólogo, doutor em ciência política pelo Iuperj e flamenguista.
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