quarta-feira, 29 de julho de 2015

O problema de Mateus 11.12


A salvação é pela graça ou depende do esforço pessoal? Boa parte dos cristãos responderiam com um enfático "Sola Gratia!". Alguns, porém, diriam que é pela graça cooperando com esforço humano. E ainda alguns poucos afirmariam que depende fundamentalmente do empenho pessoal. Nestes dois últimos casos, pode-se buscar apoio em Mateus 11:12 onde Jesus diz que “desde os dias de João Batista até agora, o reino dos céus é tomado por esforço, e os que se esforçam se apoderam dele” (Mt 11.12). Entretanto, este texto é de difícil tradução e representa um desafio considerável de interpretação.

Algumas traduções existentes em português dizem que "o reino dos céus é tomado à força"(NVI, 2000; TB, 2010), que "o reino dos céus é tomado por esforço" (ARA, 1993), que "se faz violência ao Reino dos céus" (ARC, 1968; ARC, 1969; ARC, 1995), que "o reino dos céus tem sido assaltado com violência" (APC, 1991) e que "o Reino do Céu tem sido atacado com violência"(NTLH, 2000). Sobre a identidade dos que tomam o reino é dito que são “os que usam de força”(NVI, 2000), "os que se esforçam" (ARA, 1993; TB, 2010) ou ainda "os violentos" (APC, 1991; NTLH, 2000). Há boas razões para se optar por uma ou outra tradução, mas obviamente não podem todas estar igualmente corretas.

O termo traduzido para a expressão "tomado por esforço” e suas alternativas é biazetai, derivado de biazo, que significa "usar a violência, aplicar a força; forçar, infligir violência em". O termo só ocorre aqui e em Lc 16:16, mas cognatos de biazetai são usados na Septuaginta. Exatamente na mesma forma encontrada em Mt 11:12, o verbo só ocorre no apócrifo 4 Macabeus 2.8, com o significado de “aprisionar, tornar subserviente, dominar, forçar, violentar, subjugar, dominar, pisar”. O verbo está na voz passiva. A expressão “os que se esforçam” é tradução de biastai, substantivo que significa “forte, impetuoso, que faz uso da força, violento”“o que emprega a violência, pessoa impetuosa” ou “uma pessoa que apela para a violência para alcançar os seus objetivos”.

Uma questão que surge na análise de biazetai e biastai é se são usados de uma forma favorável ou desfavorável, ou seja, se denotam algo bom ou mau. Como vimos, biazetai está na voz passiva, o que significa literalmente que o reino “é forçado, vencido, superado, tomado pela tormenta”. A voz passiva de biazo só ocorre no sentido de uma subjugação hostil ou violenta, portanto, mau. No grego extra-bíblico biastes ocorre em Filo sempre num mau sentido. Uma vez que o termo biazetai na voz passiva implica o uso de força e até mesmo de violência, o sentido de que o reino sofre violência de natureza desfavorável parece-nos a mais provável.

Isto tudo considerado, entendemos que a leitura mais natural do texto é a que diz que desde o tempo de João o reino de Deus e seus trabalhadores sofrem violência da parte de seus inimigos, que tentam evitar ou usurpar o governo divino. O grego indica que o reino está sendo atacado e que homens violentos estão tratando de impedir que outros entrem. A prisão de João e a rejeição e execução de Jesus a acontecer logo em seguida corroboram essa interpretação. Sendo assim, os biastai (violentos) são os líderes religiosos dos dias de Jesus, que reclamavam por conta próprio um direito sobre o reino ou os grupos revolucionários que pretendiam um reino terreno, como os zelotes e outros ativistas, mas não os discípulos de Jesus. Herodes pode ser incluído nessa lista pois prendeu e iria executar João.

O contexto parece reforçar a ideia de que o reino é atacado por inimigos e que seus súditos são perseguidos. No capítulo anterior, quando Jesus enviou os doze dizendo “pregai, dizendo: É chegado o reino dos céus” (Mt 10:7) avisou “eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos”(Mt 10:16) e acrescentou “acautelai-vos, porém, dos homens; porque eles vos entregarão aos sinédrios, e vos açoitarão nas suas sinagogas...” (Mt 10:17) “e odiados de todos sereis por causa do meu nome” (Mt 10:22). No capítulo 12 a perseguição anunciada no capítulo 10 e implícita no capítulo 11, começa a tornar-se explícita: “E os fariseus, vendo isto, disseram-lhe: Eis que os teus discípulos fazem o que não é lícito fazer num sábado” (Mt 12:2) e “os fariseus, tendo saído, formaram conselho contra ele, para o matarem” (Mt 12:14).

Os violentos, então, não seriam discípulos determinados, mas inimigos que tentam arrebatar o reino pela força, não entrando e tentando impedir que outros tomem parte dele. Os discípulos de Jesus são descritos no mesmo capítulo, não como homens violentos ou valentes, mas sim como pequeninos e oprimidos: “Naquele tempo, respondendo Jesus, disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim te aprouve. Todas as coisas me foram entregues por meu Pai, e ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11:25-27).

Se esta interpretação estiver correta, o uso de Mt 11:12 para defender o esforço humano na obtenção da salvação é impróprio. Aliás, advogar a interpretação de que o reino de Deus é conquistado por pessoas esforçadas levanta sérios problemas com o ensino claro e inequívoco de que salvação é unicamente pela graça e pelo poder de Deus.

Soli Deo Gloria

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